Nerdices Filosóficas – Dr. Who: a dialética hegeliana de sua regeneração


Nerdices Filosóficas
Autor: Tiago de Lima Castro
Vitrine: Valério Gamer



coluna34

O texto anterior explorou algumas questões despertadas pela série Dr. Who. Outra questão possível de reflexão são as mudanças do personagem a cada regeneração. Por que a necessidade da transformação corporal? Por que a morte de um Doutor leva ao surgimento de um outro que é ainda o mesmo?

Quando o corpo do Doutor morre, ele se regenera surgindo um novo Doutor – o que é uma característica dos Senhores do Tempo – com toda a memória anterior acumulada, porém com novos nuances de personalidade e hábitos derivados das vivências anteriores do personagem.

É como se houvesse, além de uma necessidade biológica dos Senhores do Tempo, uma necessidade interior de contínua autocriação a partir da morte de uma versão anterior de si mesmo, em que a nova versão exteriorize as conquistas e desenvolvimentos anteriores, numa versão, talvez, mais bem acabada de si mesmo. Neste caso, a morte é um verdadeiro renascimento, possibilitando novas experiências do personagem e novos desafios ao alinhar as novas tendências conquistadas com todo o seu passado ainda não revelado e que, em alguns momentos, parece que o próprio Doutor não almeja enfrenta-lo. (O especial de 50 anos deve trazer isso à tona).

Já se falou sobre dialética e Hegel (1770-1831) em outro texto, o qual se sugere a leitura em complemento ao atual para melhor compreensão da ideia de dialética. Principalmente, na relação entre Hegel e a psicanálise de Lacan.

Hegel propõe o movimento dialético, em sua obra Fenomenologia do Espírito, como um movimento interno do real de auto constituição e autocriação. Neste movimento, de maneira geral, o real afirma a si mesmo; em seguida, nega a si-mesmo, inclusive de maneira destrutiva; para em seguida negar-se novamente a si mesmo, mas sintetizando os dois momentos anteriores. Didaticamente, um movimento contínuo de tese, antítese e síntese. Essa contínua autocriação em espiral seria um processo em que continuamente o real auto constitui a si mesmo.

O próprio Hegel exemplifica com um botão de flor que morre para dar origem a flor, um estado mais bem acabado de si mesmo, sendo a flor um outro si mesmo do botão. A destruição do botão  é um processo intrínseco para o surgimento da flor, sendo este um movimento interno de auto elaboração e exteriorização de possibilidades.

É como se o Doutor para continuar nesse movimento de autocriação, e auto elaboração de si mesmo, necessita morrer num corpo para ser substituído por outro mais acabado, e assim continuamente. A morte ali é uma necessidade intrínseca para que o Doutor continue desenvolvendo-se, exteriorizando suas possibilidades atualizadas a cada nova vivência.

Há poetas que dizem que ao olhar o nosso passado encontramos diversas versões de nós mesmos. Como se a cada fase de nossa vida morrêssemos para originar um novo Eu através da assimilação das experiências anteriores e que esse novo Eu seria, posteriormente, morto para ser substituído por um novo eu.

Ao observar a infância não se vê outro de si-mesmo, do qual o atual si-mesmo advém? A cada fase de nossa existência, vendo-a a partir da dialética hegeliana, necessita-se morrer para surgir uma nova versão de nós mesmos. Como quando se busca modificar um defeito: é como se a versão de si com aquele defeito morresse, para o surgimento de um novo si-mesmo sem esse defeito.

Todos vivenciam a mesma dialética com si-mesmo, exatamente pela existência ser um puro movimento de autocriação e exteriorização de potencialidades desenvolvidas em nossas experiências cotidianas.

O medo da morte, talvez, seja exatamente o medo da mudança, o medo de aceitar a transformação do si-mesmo como parte essencial de nossa existência, o que é fácil, pois tanto quanto o corpo está em continua transformação, a consciência também o está.

Talvez um dos motivos de identificar-se com o personagem do Doutor seja que vemos ali, representado na tela, a própria necessidade de permitimos que uma versão de nós morra para o surgimento de outra, mas que ainda somos nós, mas frutos de novas experiências. O medo dessa transformação, como também o Doutor demonstra, é o nosso medo de mudar os rumos de nós mesmos.

Fontes de aprofundamento

  • Fenomenologia do Espírito, G. W. F. Hegel
Originalmente publicado em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-dr-who-a-dialetica-hegeliana-de-sua-regeneracao/#titulo


© 2013 Tiago de Lima Castro

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