Nerdices Filosóficas – Dr. Who: a dialética hegeliana de sua regeneração
O texto anterior
explorou algumas questões despertadas pela série Dr. Who. Outra questão
possível de reflexão são as mudanças do personagem a cada regeneração.
Por que a necessidade da transformação corporal? Por que a morte de um
Doutor leva ao surgimento de um outro que é ainda o mesmo?
Quando o corpo do Doutor morre, ele se
regenera surgindo um novo Doutor – o que é uma característica dos
Senhores do Tempo – com toda a memória anterior acumulada, porém com
novos nuances de personalidade e hábitos derivados das vivências
anteriores do personagem.
É como se houvesse, além de uma
necessidade biológica dos Senhores do Tempo, uma necessidade interior de
contínua autocriação a partir da morte de uma versão anterior de si
mesmo, em que a nova versão exteriorize as conquistas e desenvolvimentos
anteriores, numa versão, talvez, mais bem acabada de si mesmo. Neste
caso, a morte é um verdadeiro renascimento, possibilitando novas
experiências do personagem e novos desafios ao alinhar as novas
tendências conquistadas com todo o seu passado ainda não revelado e que,
em alguns momentos, parece que o próprio Doutor não almeja enfrenta-lo.
(O especial de 50 anos deve trazer isso à tona).
Já se falou sobre dialética e Hegel (1770-1831) em outro texto,
o qual se sugere a leitura em complemento ao atual para melhor
compreensão da ideia de dialética. Principalmente, na relação entre
Hegel e a psicanálise de Lacan.
Hegel propõe o movimento dialético, em sua obra Fenomenologia do Espírito,
como um movimento interno do real de auto constituição e autocriação.
Neste movimento, de maneira geral, o real afirma a si mesmo; em seguida,
nega a si-mesmo, inclusive de maneira destrutiva; para em seguida
negar-se novamente a si mesmo, mas sintetizando os dois momentos
anteriores. Didaticamente, um movimento contínuo de tese, antítese e
síntese. Essa contínua autocriação em espiral seria um processo em que
continuamente o real auto constitui a si mesmo.
O próprio Hegel exemplifica com um botão
de flor que morre para dar origem a flor, um estado mais bem acabado de
si mesmo, sendo a flor um outro si mesmo do botão. A destruição do
botão é um processo intrínseco para o surgimento da flor, sendo este um
movimento interno de auto elaboração e exteriorização de
possibilidades.
É como se o Doutor para continuar nesse
movimento de autocriação, e auto elaboração de si mesmo, necessita
morrer num corpo para ser substituído por outro mais acabado, e assim
continuamente. A morte ali é uma necessidade intrínseca para que o
Doutor continue desenvolvendo-se, exteriorizando suas possibilidades
atualizadas a cada nova vivência.
Há poetas que dizem que ao olhar o nosso
passado encontramos diversas versões de nós mesmos. Como se a cada fase
de nossa vida morrêssemos para originar um novo Eu através da
assimilação das experiências anteriores e que esse novo Eu seria,
posteriormente, morto para ser substituído por um novo eu.
Ao observar a infância não se vê outro de
si-mesmo, do qual o atual si-mesmo advém? A cada fase de nossa
existência, vendo-a a partir da dialética hegeliana, necessita-se morrer
para surgir uma nova versão de nós mesmos. Como quando se busca
modificar um defeito: é como se a versão de si com aquele defeito
morresse, para o surgimento de um novo si-mesmo sem esse defeito.
Todos vivenciam a mesma dialética com
si-mesmo, exatamente pela existência ser um puro movimento de
autocriação e exteriorização de potencialidades desenvolvidas em nossas
experiências cotidianas.
O medo da morte, talvez, seja exatamente o
medo da mudança, o medo de aceitar a transformação do si-mesmo como
parte essencial de nossa existência, o que é fácil, pois tanto quanto o
corpo está em continua transformação, a consciência também o está.
Talvez um dos motivos de identificar-se
com o personagem do Doutor seja que vemos ali, representado na tela, a
própria necessidade de permitimos que uma versão de nós morra para o
surgimento de outra, mas que ainda somos nós, mas frutos de novas
experiências. O medo dessa transformação, como também o Doutor
demonstra, é o nosso medo de mudar os rumos de nós mesmos.
Fontes de aprofundamento
- Fenomenologia do Espírito, G. W. F. Hegel
© 2013 Tiago de Lima Castro
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