NERDICES FILOSÓFICAS – DR. WHO, A IMAGEM DE SI E DO OUTRO E A DIFICULDADE DO PERDÃO
Na série Dr. Who acompanha-se a
trajetória do Doutor, que é um alienígena de Gallifrey com mais de 900
anos e que viaja no tempo e espaço através de TARDIS, sua máquina do
tempo. Há um artigo no site apresentando a série com maiores detalhes.
Uma
questão que a série provoca é o problema da identidade pessoal do
Doutor. Afinal, mesmo ele tendo mais de 900 anos de idade, ele passou
por sucessivas regenerações que propiciaram diferentes corpos ao longo
desse tempo. Com tais corpos, surgiam nuances em sua personalidade, em
seu paladar e mesmo em alguns hábitos. É como se toda a memória do
Doutor – pensando a memória enquanto um continuum total de experiências e
percepções interiores e exteriores – fosse encarnando em cada um destes
corpos, porém cada corpo apresentando nuances específicos desse todo,
mas simultaneamente, os conflitos do personagem são os mesmos, ainda que
estes não sejam estáticos na série. Assim, vemos o Doutor caminhando em
sua trajetória de solidão e mágoas de um passado que, mesmo sendo ele
um Senhor do Tempo, não pode modificar completamente tanto para manter o
Universo existente quanto como também se ele soubesse, interiormente,
que apagar seu passado seria apagar a si mesmo.
Como se reconhece uma pessoa? Um
personagem? Como se forma essa imagem do outro e de si mesmo? No caso do
Dr. Who, como compreender o seu reconhecimento mesmo com as mudanças de
corpo em suas sucessivas encarnações?
Como eu identifico o outro? Num primeiro
momento, através da percepção desse outro pelos sentidos. Sua imagem
táctil, visual, odora, auditiva… A presença de uma imagem do outro é que
nos permite reconhecermos aquela pessoa. Este conjunto de percepções
advindas dos sentidos é sempre multi-sensorial, inclusive pode-se
refletir o quanto as redes sociais hoje não são fontes de percepções
desse outro.
Essa imagem do outro apresenta ainda mais
um aspecto, que sempre desafia a possibilidade de apreender o outro
através da linguagem, que é sua memória, o continuum de experiências e
percepções externas e internas interpenetrados. O total desse continuum é
acessível somente à própria pessoa, pois ela se reconhece através de
sua memória. Ela extravasa parte de si através da linguagem, de seu
corpo e de todas suas ações. A percepção nossa desse conjunto de atos
interpenetrando-se geram a imagem que temos do outro.
Nos momentos em que a pessoa olha a si
mesmo, buscando reconhecer-se, também surge uma imagem do si-mesmo. É
como se paralisarmos esse movente que somos, em contínua autocriação,
para conseguir nos observar. É como um sair de si-mesmo para ver a si. O
problema que essa imagem tende a ser uma imagem estática e não movente,
advindo o contínuo engano sobre si-mesmo devido a formação de uma
imagem estática sobre si-mesmo, e não de uma imagem-movimento, a qual
apreenderia o si-mesmo em seu dinamismo e movimento.
Dr. Who desafia a pensar o reconhecimento
porque quando um personagem que o conhece o reencontra a imagem advinda
dos sentidos traz as experiências anteriores com o Doutor na memória, o
que ocorre conosco cotidianamente ao encontrar um conhecido. Contudo,
ocorre que pessoas que conheceram o Doutor em outro corpo o encontrem.
Primeiramente, a imagem do Doutor apreendida por esta pessoa é confusa
devido à mudança de corpo, mas quando se percebe os atos, a maneira de
agir, mesmo com nuances, novamente percebe-se que é o Doutor, tornando a
imagem clara novamente. É uma luta que ocorre entre uma imagem
estática, calcada no corpo passado, e uma imagem dinâmica que apreenda o
novo corpo e os nuances da nova maneira de agir e mesmo assim, essa
imagem dinâmica compreende o todo de vivências do personagem com o
Doutor.
Isso ocorre com todos ao se aproximar de
alguém que não se vê há algum tempo. Podem ter havido transformações
comportamentais devido à passagem do tempo, como pode ter havido
transformações físicas tanto devido ao tempo, como devido a situações
que geram deformações físicas. Primeiramente a luta com aquela imagem
estática presente em nossa memória, mas com um contato mais profundo
essa imagem do outro se torna uma imagem-movimento que apreende o outro
em seu dinamismo.
A série demonstra como tendemos a olhar o
outro por uma imagem estática calcada no passado, e não uma imagem que
apreenda o movimento que toda pessoa é em si-mesma. Daí advém a grande
dificuldade que temos do perdoar…
E, além disso, o Doutor demonstra muitas
vezes a dificuldade de se perdoar, pois em certos momentos ele parece
olhar a si mesmo também em uma imagem estática de seu passado em
Gallifrey, que deve ser explorado no especial de Natal nesse ano (2013).
Em quantos momentos olhamos a nós mesmos com uma imagem estática de um
passado que passou e não percebemos que nós também somos seres moventes
em contínua autocriação? Será que nos perdoamos por nossos próprios
erros se não passarmos a ver em nós essa possibilidade de transformação?
Nesse texto se utilizou de conceitos do filósofo francês Henri Bergson para ler o problema que a série provoca, não necessariamente para explicá-lo.
Fontes de aprofundamento
Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Henri Bergson
Matéria e memória, Henri Bergson
O pensamento e o movente, Henri Bergson
Matéria e memória, Henri Bergson
O pensamento e o movente, Henri Bergson
Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-dr-who-a-imagem-de-si-e-do-outro-e-a-dificuldade-do-perdao/
© 2013 Tiago de Lima Castro
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