Nerdices Filosóficas – Cristianismo e Ocidente: o conceito de amor e perdão

Autor: Tiago de Lima Castro
Revisão: Paulo V. Milreu
Vitrine: Valério Gamer


Seguindo a proposta da semana anterior, trataremos do conceito de amor surgido com o cristianismo. Amor é um conceito extremamente amplo por abranger diversos sentidos no senso-comum, porém, ao propor um novo conceito de amor, ligado a ideia de perdão, propõe outra forma de relacionar-se com outras pessoas.



Jovem defendendo-se de Eros   William Bouguereau (1825–1905)
Jovem defendendo-se de Eros
William Bouguereau (1825–1905)
Entre os gregos, existiram dois termos para se falar de amor. Havia uma clareza em sua significação e em seu uso cotidiano.

O primeiro é Éros (do gr. ἔρως), que tem como uma das traduções latinas libido, que propunha uma relação entre um amante a um objeto amado. Éros, como força da alma, leva o amante à busca de seu objeto amado, que pode ser uma pessoa, e necessita estar com ela, se realizando no contato com o objeto amado. Há uma cobiça implícita nesse conceito, no sentido de que Éros somente realiza-se ao ter o objeto amado. Entre os gregos, houveram diversas análises sobre Éros, sendo famosa a análise platônica, no Banquete, em que há o amor vulgar, que se dirige somente ao corpo e não a alma (normalmente um amor entre dois homens); e o amor celeste que passa por seis graus: amor por um belo corpo, amor pela beleza física em geral, amor pela beleza espiritual, pela beleza moral (dos costumes), amor pela beleza do conhecimento chegando ao amor pela essência da beleza, do bem e do belo. Há outras análises, mas essa tendência de Éros de busca, de cobiça, de anseio pelo objeto amado, é característica desse sentido de amor.

TD_philia2Outro sentido é a Philía (do gr. φιλία), normalmente traduzido por amizade. É um laço com o outro, ambos nutrem-se da mútua companhia, mas não há necessidade de cobiça, de ter o objeto amado para si. O termo filosofia significa: amizade à sabedoria, de maneira que se almeja o contato com a sabedoria sem haver a presunção de tê-la completamente para si. Aristóteles analisou a Philía como o que possibilita as relações sociais entre as pessoas, devido a ser sempre benéfica as duas partes.

Nas reflexões filosóficas dos gregos e helenistas, não havia uma tensão entre as duas formas de amor, ambas eram partes da vida, mesmo cada filósofo colocando ênfase em uma ou outra, há uma clareza da diferença entre ambas. No latim, isso ficará um pouco mais confuso.

Por mais que o cristianismo tenha surgido no Oriente Médio, os primeiros textos, segundo as pesquisas históricas, foram escritos em grego, mesmo que um grego popular e cheio de hebraísmos em sua escrita. Daí o porquê utilizarmos o termo em grego para refleti-lo filosoficamente.
Jesus heilt die Kranken Gabriel von Max ()
Jesus heilt die Kranken
Gabriel von Max ()

O amor cristão tem o termo grego Ágape (do gr. ἀγάπη), atualmente traduzido como amor e como caridade. Normalmente era um termo específico para relações familiares e afeição entre crianças. Porém, o cristianismo propõe o amor a Deus, acima de tudo, e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Marcos 12:31). No sentido cristão, o amor propõe ter o outro como um irmão, o próprio termo fraternidade tem origem em frater, no latim, que significa irmão. Para compreender o amor cristão é necessário lembrar que os conceitos anteriores sempre são relações onde se espera algo, de alguma forma, do outro. No amor cristão não, ama-se independente do próximo retornar esse amor de alguma maneira, daí advindo à proposta do perdão das ofensas. É um amor que não espera resposta, pois o outro é um irmão para mim.

Antes do cristianismo, a reflexão grega moral e política sempre ocorreu tendo a cidade como eixo, ou seja, não se reflete para dialogar com outra cidade, mas para viver bem em minha própria cidade mantendo uma relação específica com minha família e necessitando de boas relações com meus concidadãos para todos termos uma boa vida. Entre os helenistas e romanos, já há a ideia de uma cidade universal, primeiro o império de Alexandre e depois o império romano, assimilando a possibilidade de diferenças culturais, porém havendo uma relação específica com a família e necessitando ter boas relações entre concidadãos, mesmo estes sendo outros membros do império.

Com o cristianismo, o amor-caridade ao próximo coloca este próximo como irmão, afinal, todos somos filhos de Deus. A ideia contemporânea de uma humanidade, de uma espécie humana, mesmo em sua diversidade cultural, tem origem exatamente no cristianismo. A maneira como pensamos em termos de humanidade é um conceito que foi surgindo no cristianismo, e mesmo ideias como igualdade entre todos tem origem ai. Porém, a exigência do amor a Deus pelo outro para que eu o ame, foi o eixo de interpretação das ortodoxias cristãs, mesmo havendo controvérsias.

Entretanto, o amor cristão exige o perdão das ofensas, que dentro daquele contexto não era interpretado somente como um ato individual de uma pessoa perdoar seu ofensor, mas perdoar implica em não exigir pessoalmente as punições devidas, isso cabendo a Deus. Dentro de um contexto romano, em que a escravidão por dívidas era um dos motores sociais, o amor cristão é revolucionário, afinal, se perdoo as dívidas e ofensas do meu próximo, cabendo a Deus puni-lo, não posso escravizá-lo.

Numa relação com outro império ou outro estado, a ideia de devolver uma ofensa com uma ação militar torna-se absurda, pois se necessito perdoar o outro, os estados guerrearem começa a tornar-se algo não necessariamente natural. Mesmo que politicamente não ocorreu exatamente assim, a gênese de nosso pensamento moderno de boas relações entre as nações, justiça social aos desfavorecidos, uma humanidade em geral, são conceitos oriundos da revolução conceitual do amor proposta pelo cristianismo. Há críticas também, que apresentaremos em outros textos, porém não devemos negar as conquistas conceituais, e mesmo práticas, geradas pelo cristianismo.


© 2013 Tiago de Lima Castro

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