Nerdices Filosóficas – O Senhor dos Anéis e a inocência ética dos Hobbits

Autor: Tiago de Lima Castro
Revisão: Paulo V. Milreu
Vitrine: Valério Gamer


Na obra O Senhor dos Anéis (The Lord of the Rings), de J. R. R. Tolkien, vemos o Um Anel ir parar nas mãos de Frodo, um simples Hobbit como os demais, que vive a singeleza de uma alegria, talvez, epicurista, e uma postura pirrônica perante o conhecimento. Estas criaturas tem a admirável capacidade de manter a inocência e a pureza mesmo enquanto adultos.

Ao ver os filmes, ou ler os livros, vê-se que o destino da Terra-Média está nas mãos destas simples criaturas, ao invés de membros de outras raças mais fortes e sábias é algo que possibilita uma série de questões. Será que Sauron depositava confiança que a inocência destas criaturas fariam que fossem bons fantoches aos seus desígnios? Mas se for isso, por que eles resistem tanto a sua influência? Lembrando o tempo que Bilbo ficou com o Um Anel e o tempo que leva para Frodo corromper-se por sua influência. Por que Gandalf, um dos maiar, não aceitou carregá-lo por poder ser corrompido, mesmo tendo grande sabedoria?

Antes de continuar, recomendo ler o texto sobre ética e moral da coluna para esclarecer o uso dos termos.

Muitas éticas produzidas ao longo da história da filosofia vão propor elementos racionais para condução de nossas ações. Podemos citar Immanuel Kant (1724-1804), que irá propor como base racional para ética o imperativo categórico: “age de tal forma que a norma de tua ação possa ser tomada como lei universal”, na obra Crítica da razão prática (1788). Falar de Kant em um texto curto é um grande desafio, mas a ideia básica é que este imperativo é o ponto de partida racional para tomada de decisões – apesar dessa proposta não ser estritamente racional, daí não utilizar-se da razão pura para reflexão nesse caso. Se a ação que planejo tem validade universal, ou seja, vale para todas as pessoas e não me utilizo do outro como meio para algum fim, será uma ação ética.

Há muitas críticas posteriores as propostas kantianas, não sendo o foco para este texto. Porém, considerando uma pessoa em um momento de decisão extrema, teria ela condições plenas de raciocinar sobre sua ação? Um exemplo: alguém irá atirar em um desconhecido e você pode salvá-lo com um simples pulo levando esse tiro, numa situação limite como essa não há tempo de racionalização para efetuar uma escolha.

Será que inserido em um meio onde algo terrível é considerado normal, por questões socioculturais, não se faria atrocidades sem ao menos raciocinar, talvez por não ter condições de fazê-lo tamanho o fechamento nesta sociedade? No período escravista do Brasil, tratar uma pessoa como um objeto que se possui, o que era feito com os escravos, era algo natural daí poucos refletirem e colocarem-se contra esse absurdo. Refletir sobre a atrocidade que se comete no simples ato de olhar a um humano e ver algo a lhe servir, um escravo, exige uma condição de abertura e não fechamento nas crenças estabelecidas socialmente.

Tal é a reflexão ética do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), judeu, pois uma pessoa – lembrando que a sociedade que é composta de pessoas – pode se fechar na linguagem, a qual representa a realidade, não sendo a própria realidade que é movente em si mesma. Somente uma abertura, não se fechando na linguagem e na representação, que possibilita uma abertura moral; já que o fechamento gera a busca pela extinção do outro, daquilo que é diferente do que é proposto pelo discurso sociocultural, tendo num elemento extra racional, o amor, como fonte de abertura para ações efetivamente morais.

Vladimir Jankélévitch (1903 – 1985) foi um filósofo que se iniciou como comentador de Bergson, mas comentando para produzir o novo, o que o próprio Bergson percebeu e incentivou. Ele propõe que a moral, essa potência de decidir por ações efetivas, não pode ser estabelecida pela razão somente, já que a moral é um paradoxo. Um exemplo: como colocar de maneira racional uma mãe que sacrifica seu próprio ser, passando fome para dar comida a seu filho? É um paradoxo, pois o amor ao filho exige um esquecimento e um sacrifício de si, o que não é algo estritamente racional, somente um elemento extra-racional, o amor, pode gerar essa ação.

A nossa consciência, segundo Jankélévitch, pode perder essa inocência que nos protege de todo argumento racional para executar atrocidades, como ocorrera no nazi-fascismo, que o filósofo vivenciou plenamente sendo judeu. Essa inocência de levar a cabo esse ímpeto, esse impulso do amor que permitiria ações efetivamente éticas. E o grande perigo de nossa consciência é aceitar estes complôs de auto conservação que permitem, por exemplo, vermos uma criança passando fome e ver aquilo como normal, pois assim não sofremos com isso. Veja que Jankélévitch reflete a moral pelo prisma da pessoa, em suas escolhas, principalmente, no momento efetivo da escolha e da ação.

Em Tolkien, vemos que justamente os Hobbits, os seres que mantém essa inocência infantil é que são capazes de resistirem às tentações do Um Anel. Quanto tempo levou a que Bilbo e Frodo fossem corrompidos? Quando Sam retorna para ajudar Frodo, mesmo após este desconfiar dele, não o faz por uma reflexão racional, mas por um impulso, por uma inocência de simplesmente querer ajudar seu amigo. Essa inocência destes incríveis seres é que faz Gandalf os escolherem para tão difíceis tarefas, e esta inocência, essa capacidade sublime de amar, de vivenciar a amizade de maneira plena, que os torna tão especiais e mostra que Tolkien sabia muito bem o que fazia ao escrever este épico de nosso tempo, onde, paradoxalmente, encontramos a verdadeira sabedoria de vida na inocência quase infantil de simples Hobbits.

Fontes de aprofundamento

As duas fontes da moral e da religião, Henri Bergson
Bergson e Jankélévitch, Franklin Leopoldo e Silva
Crítica da razão prática, Immanuel Kant
Curso de filosofia moral, Vladimir Jankélévitch
Kant e o imperativo categórico
O paradoxo da moral, Vladimir Jankélévitch
O pensamento ético de Henri Bergson, André Brayner de Farias
Primeiras e últimas páginas, Vladimir Jankélévitch
The Lord Of Rings, J. J. R. Tolkien

Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-o-senhor-dos-aneis-e-a-inocencia-etica-dos-hobbits/


© 2013 Tiago de Lima Castro

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