Nerdices Filosóficas – V de Vingança: Como evitar a repetição do passado?
Para compreender a coluna veja a página de explicação.
Autor: Tiago de Lima Castro
Revisão: Paulo V. Milreu
Vitrine: Valério Gamer
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V de Vingança foi analisado em outro número,
com o foco na banalidade do mal. Neste número, a abordagem gira em
torno do final dos quadrinhos, o qual difere do filme – e será analisado
posteriormente em outro texto.
Sem contar muitos detalhes, nos
quadrinhos Evey passa por um processo de libertação, como no filme, mas
vai sendo preparada por V para tomar o seu lugar, o que efetivamente
ocorre. Esta troca fixa V como uma ideia, e não como uma pessoa, sendo
que o personagem, nos quadrinhos, é tão cruel e violento quanto os
fascistas com os quais ele luta, afinal, ele é fruto do próprio
fascismo. Após a destruição do sistema, a reconstrução guiada por V
levaria a uma repetição da violência e da coação, ainda que disfarçada
de uma nova ideia. Como alguém doutrinado no fascismo, mesmo sendo
anarquista, criaria algo novo utilizando-se de seus métodos? Quantas
vezes na história não vemos a busca de criar novas condições de vida em
sociedade partirem de métodos antigos e tornaram a repetir o passado com
uma nova roupagem?
Ao libertar Evey sem doutriná-la em seus
métodos, V busca a construção de algo novo, inusitado, diferente de tudo
aquilo vivenciado, com abertura para criar o novo. Ela não sabe o que
criará, exatamente por ser novo e indeterminado. O autor foi sagaz ao
não apresentar o novo futuro, já que o novo não pode ser pensando antes
de ser realizado, somente sendo pensado no próprio processo de
realização, o que supera a clássica divisão entre o pensar e o agir,
reflexão e a práxis.
Filosoficamente, pode-se compreender essa
escolha de V como uma tentativa de escapar à dialética. O método
dialético exposto por Hegel (1770-1831) – que fora apropriado por Marx
(1818-1883) e pelos diversos marxistas – pode ser compreendido na
metáfora do botão, momento de afirmação; que se destrói para surgir a
flor, momento da negação; a qual destrói-se para surgir o fruto, momento
da negação da negação. O fruto tornar-se-á um novo botão que continuará
o processo. Por mais que o fruto negue a flor e o botão, esse processo é
de transformação interna em que, potencialmente, o fruto já existe no
botão, sendo este sua realização. A história, pensada a partir da
dialética, caminha rumo a uma finalidade, como o botão tem sua
finalidade no fruto, mesmo que não se realize ou que o tempo para isso
seja indeterminado, a finalidade já está implícita em seu momento de
afirmação, em seu início.
Há críticas a este método, pois como a
finalidade já está implícita na afirmação, a finalidade acaba
reafirmando a afirmação, como na metáfora acima onde o fruto será negado
em um novo botão, por exemplo. Ao ver os fascistas dos quadrinhos como
a afirmação, o herói anarquista V como a negação do fascismo, o novo
momento decorrente seria advindo dos métodos de V, que são os mesmos dos
fascistas; portanto: O que isso geraria? Uma nova política que se
utiliza da coação e da violência, ou seja, uma reafirmação do fascismo
com uma nova roupagem.
A filósofa Hannah Arendt (1906-1975)
criticou a política do século XX propondo a necessidade de se
experimentar o novo, já que as tentativas de mudanças vivenciadas
reafirmaram a violência e coação do passado. Certa feita, um jornalista
perguntou ao filósofo francês Henri Bergson (1859-1941): Como seria o
teatro no futuro? Ele responde: “Se soubesse, eu mesmo o faria”, pois o
novo não pode ser previsto racionalmente, já que ao tentar fazê-lo
somente reafirmar-se-ia o passado com uma nova roupagem. O novo
necessita ser pensando enquanto ele é criado, não há separação entre a
reflexão e a prática, sendo que a reflexão e a construção do novo
ocorrem simultaneamente, sem saber aonde vai se chegar.
Dessa forma, o final dos quadrinhos é uma
abertura ao novo, ao indeterminado, negando uma finalidade da história,
o que não implica que surja algo necessariamente melhor. A Primeira e
Segunda Guerra Mundial trouxeram uma nova forma de violência jamais
prevista, mas pode surgir o novo não tão trágico. Nestes momentos de
manifestações, a reflexão de Arendt e Bergson, e mesmo de outros
filósofos, mostram a necessidade de cuidado para não cair na armadilha
de repetir o passado com uma nova roupagem, através de métodos já
testados e historicamente não-funcionais; e de buscar experimentar o
novo, o qual não se prevê, mas sobre o qual se pensa no próprio processo
de criação.
Fontes de Aprofundamento
As duas fontes da moral e da religião, Henri BergsonA Evolução Criadora, Henri Bergson
Alan Moore: O Mago das Histórias em Quadrinhos, Gary Spencer Millidge
Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt
Fenomenologia do Espírito, G. W. F. Hegel
O Pensante e o Movente, Henri Bergson
V de Vingança, Alan Moore e David Lloyd
Publicado Originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-v-de-vinganca-como-evitar-a-repeticao-do-passado/
© 2013 Tiago de Lima Castro
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