Nerdices Filosóficas – Matrix e o Mito da Caverna
Autor: Tiago de Lima Castro
Revisão: Paulo V. Milreu
Vitrine: Valério Gamer
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Já se discutiu sobre Matrix em outro artigo, mas o foco desse texto é analisar a relação entre o filme e o mito da caverna de Platão.Esse
tipo de comparação não é incomum, devido às diversas possibilidades de
interpretação que o mito permite. Platão conhecia este potencial,
utilizando-o mesmo para críticas, como fez com a obra de Homero. É
importante compreendermos que Platão utiliza-os enquanto ilustração para
facilitar o entendimento de seu leitor, não tendo o mito uma finalidade
em si mesmo.
Ao articular a narrativa do filme com o mito da caverna não se pode
perder de vista que o filme tem muito a dizer por si mesmo, não
reduzi-lo a uma explicação didática de Platão. Da mesma maneira, o mito
da caverna pode ser utilizado como uma introdução ao pensamento do
filósofo ateniense, mas não podemos esquecer que ele tem uma finalidade
específica dentro do diálogo “A República”, sendo necessário compreendê-lo dentre de seu contexto.
O mito está escrito no livro VII de “A República” (514a-517c), aparecendo no diálogo entre os personagens Sócrates e Glauco. O mito será narrado e já articulado com o filme.
Ele inicia falando de homens acorrentados em uma caverna de tal
maneira que só conseguem olhar para uma parede. Além disso, foi na
caverna que nasceram e se criaram. Há uma fogueira atrás deles que
projeta sombras na parede. Entre ambos, há um caminho em que passam
pessoas falando e carregando objetos. Tudo que os prisioneiros veem são
as sombras destes homens e objetos projetados, ao mesmo tempo em que
escutam suas vozes. Como só podem ver aquilo que é refletido na parede,
veem somente as aparências das coisas projetadas como sombras, mas
acreditando que veem as coisas reais. Este é o estado das pessoas na
Matrix, como Neo no início, que acreditam que toda aquela realidade
virtual é o real, pois também cresceram e se desenvolveram ali dentro.
Se alguma delas fosse libertada, levada a andar de pé, endireitar o
corpo, acostumar-se a ver o que há além da parede, teria um grande e
doloroso processo de adaptação, sendo um longo processo até acostumar-se
com o sol e poder ver as coisas reais. No mito, isto se inicia quando
alguém retira um prisioneiro. Da mesma maneira, Neo é retirado da Matrix
por Morpheus e Trinity, mas este processo é extremamente doloroso para
Neo, pois precisa aprender a usar o verdadeiro corpo, a ver as coisas
reais e aceitá-las enquanto reais. Poderia ocorrer uma negação deste
real e uma busca de retorno a Matrix como era antes, como vemos com
Cypher.
Ao acostumar-se com o real, com o sol, naturalmente não se suporta a
ideia de ver alguns prisioneiros ainda presos às correntes. O retorno à
caverna, portanto, era o caminho natural, mas também difícil, pois
adentrar a caverna implica em não conseguir ver claramente tudo o que há
na caverna. Além disso, há o problema de como falar do real, do que há
fora da caverna, para quem apreende somente sombras refletidas na
parede? A própria incompreensão pelas mudanças no indivíduo, leva os
demais a quererem matá-lo. Vemos isso no filme em todo o processo de
aprendizado sobre como entrar na Matrix, em todo o treinamento de Neo e,
quando ele torna-se o escolhido, passar a ver código e não a aparência
que os demais veem. O fato dos demais presos permitirem tornar-se o
agente Smith para protegê-la, mostra o desejo inconsciente de manter-se
neste simulacro de realidade.
Essa articulação é possível, mas precisamos compreender que a saída
da caverna em Matrix é a saída de uma coisificação do humano, o qual
tornou-se mera pilha de máquinas, perdendo sua humanidade, processo
decorrente da própria dominação do humano pelo humano. Por mais que o
filme abunde de recursos tecnológicos, pode-se perceber uma crítica aos
excessos da técnica e da tecnologia como possíveis de destruir o próprio
humano.
Em Platão, o mito tem a função de mostrar o caminho do filósofo que
deixa de ver as coisas sensíveis, apreendidas pelos sentidos como o real
para apreender aquilo que realmente é real, que são as ideias (eidos
no gr.). O branco que vejo na parede é mutável e particular, portanto
não é real; o branco em si mesmo é a ideia de branco, o qual é
universal. Este é o caminho do filósofo: sair da caverna de aparências e
simulacros do real para o mundo das ideias, do conceito. O autor o
utiliza como metáfora desse caminho, dessa teoria do conhecimento,
necessário ao governante da República, que é o fio condutor deste diálogo platônico.
Por mais que esta articulação seja comum, é necessário cuidado para
entender a proposta do filme e a proposta de Platão e não confundi-las.
Tem alguns artigos indicados abaixo, para aprofundar a compreensão de
Platão. Recomendo reassistir aos filmes, buscando repensá-lo após essa
travessia pelo mito da caverna.
Fontes de aprofundamento
A República, Platão
Filosofia Antiga Underground: Da Katábasis ao Hades à Caverna de Platão, Gabriele Cornelli
Platão: Mito e Paideia, Gilda Naécia Maciel de Barros
Filosofia Antiga Underground: Da Katábasis ao Hades à Caverna de Platão, Gabriele Cornelli
Platão: Mito e Paideia, Gilda Naécia Maciel de Barros
Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-matrix-e-o-mito-da-caverna/
© 2013 Tiago de Lima Castro
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