Nerdices Filosóficas – RPG: uma leitura filosófica
O RPG (Role-Playing Game) de mesa é um jogo onde os participantes
interpretam uma narrativa. Uma comparação possível é com brincadeiras
que crianças fazem onde imitam personagens e, simultaneamente, vão
inventando estórias.
Ele tem como principal característica, a interpretação e criação de
narrativas em conjunto. Para isso, existe um mestre que vai conduzir a
aventura, descrevendo ambientes, situações e tudo o mais, regras que
visam uma coerência durante o jogo, trazendo o elemento do acaso,
permitindo que os personagens se aperfeiçoem durante a narrativa, pois
as escolhas dos jogadores, em comunhão com o mestre e o acaso, levam a
essa criação conjunta.
Existem diversos sistemas de RPG, abrangendo mundos medievais, mundo
real, vampiros, ficção científica, cyberpunk, steampunk, entre outros…
Um elemento comum a todos os sistemas é a possibilidade de escolher
elementos como raça, classes, clã, entre outros que contribuam para a
construção do personagem.
No sistema D&D, que é um RPG inspirado no mundo criado por
Tolkien, você escolhe a raça e a classe de seu personagem, sendo que a
raça traz características físicas aos personagens e mesmo tendências
específicas, enquanto a classe estabelece a função do personagem no
grupo. Por exemplo, você pode ser um elfo, um anão, um humano, entre
outros; sendo que seu personagem pode ter a classe de guerreiro, mago,
ladino, entre outros. A comunhão destes dois dados estabelece
comportamentos, maneira de agir na narrativa e outras coisas. Um mago,
por exemplo, não entrará em conflito direto e buscará melhorar suas
magias, enquanto um guerreiro entra em conflito direto e buscará armas
melhores.
Este é um exemplo, já que existem outros sistemas com diferentes
terminologias, mas o essencial é que um bom jogador precisa além de
saber jogar, interpretar seu personagem. Durante a partida, ele
necessitará pensar enquanto membro de uma determinada raça e de uma
classe. O jogador sabe que continua sendo quem ele é, mas durante o
jogo, ele coloca-se no lugar daquele personagem e vivencia aquelas
situações imaginárias como se fosse aquele personagem, como fazem as
crianças.
Quando melhor compreender o seu personagem, a interpretação será
melhor e mais eficiente, afinal, o acaso é parte intrínseca ao jogo,
tanto pela ignorância do jogador sobre o que o mestre planejou, como
pelo uso dos dados e das escolhas dos outros jogadores. Se o jogador não
conseguir interpretar o personagem, pensar no que ele deveria fazer, ou
o que faria naquela situação, dentro de suas características
intrínsecas, será mais difícil de conduzir o jogo…
Interessante é que ao mesmo tempo em que o jogador interpreta o
personagem com plena consciência de estar interpretando, o ato de
interpretá-lo pode também transformá-lo. Na situação lúdica criada no
jogo, o indivíduo permite-se ser outra pessoa, num exercício quase
teatral, o que não o impede de ser ele mesmo, afinal ele pode ver
aspectos de si mesmo que não sabe lidar bem, às vezes o jogo pode
impulsioná-lo a mudar alguma característica pessoal inclusive. É claro
que em alguns casos, muito específicos, o jogador pode preferir o mundo
imaginado que o próprio, deixando de ser uma diversão para tornar-se uma
obsessão, mas nestes casos, já há tendências do indivíduo para isso,
sendo isso uma exceção e não regra. O ato de interpretar um personagem, o
ensina a cultivar outras perspectivas, enriquecendo sua capacidade de
olhar as coisas, as pessoas e o mundo.
Ao pensar neste aspecto da interpretação no jogo de RPG, pode-se ver
que a maneira de ler um livro, ou artigo, de filosofia é o mesmo. Ler um
filósofo não deixa de ser tentar interpretá-lo não somente naquilo que
ele diz, mas buscando entender o próprio fluxo do pensamento do autor
registrado naquele texto.
Pense em um filósofo ateu como Denis Diderot (1713-1784). Se o leitor
for religioso e ler a obra de Diderot sobre essa temática com os olhos
prontos a fustigarem cada argumento, há grandes chances de não entender
o autor e nem dar-se a chance de refletir com o autor. Se você ler os
textos de Diderot buscando interpretar o texto, pensando na linguagem da
época, nos problemas daquele período, tentando vivenciar o percurso do
pensamento do autor, até se permitindo interpretar, como um jogador de
RPG faz com seu personagem, o próprio Diderot daquele texto, eis a
possibilidade de compreender o seu raciocínio. É como se ao buscar
interpretar o texto colocando-o em contexto de época, e todos os
problemas daí derivados, e mesmo se permitir compartilhar das ideias
durante a leitura, a compreensão do texto será muito mais rica.
Não significa que ao ler o texto dessa maneira, permitindo-se
compartilhar das ideias e propostas do autor durante a leitura, o leitor
necessariamente sofrerá uma conversão a estas idéias, podendo ocorrer o
contrário, mas, minimamente, passar a ver estas questões com um novo
olhar, mais enriquecido por novas perspectivas.
Da mesma maneira, um ateu lendo um texto de um filósofo religioso
como Pascal (1623-1662) precisa permitir-se compartilhar das crenças do
autor durante a leitura para uma compreensão mais profunda, o que não
necessariamente resulte numa conversão do leitor, mas num olhar mais
enriquecido às questões tratadas pelo autor.
A grande questão é acompanhar o pensamento do autor, o que podemos
chamar de hermenêutica, interpretação, para assim compreendê-lo com
maior amplitude. Não se deve ter receio de fazer isso, pois ler um
filósofo, discutir com ele durante a leitura, apreender o fluxo de seu
pensamento naquele texto específico é extremamente enriquecedor. Se ao
ler um texto filosófico e não ver a questão tratada pelo autor de uma
nova maneira, ou mesmo não surgir outras questões, é sinal que leitura e
interpretação precisam ser refeitas.
Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-rpg-uma-leitura-filosofica/
© 2013 Tiago de Lima Castro
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