Nerdices Filosóficas – RPG: uma leitura filosófica


Nerdices Filosóficas
Revisão: Juan Villegas
Vitrine: Valério Gamer
O RPG (Role-Playing Game) de mesa é um jogo onde os participantes interpretam uma narrativa. Uma comparação possível é com brincadeiras que crianças fazem onde imitam personagens e, simultaneamente, vão inventando estórias.

Ele tem como principal característica, a interpretação e criação de narrativas em conjunto. Para isso, existe um mestre que vai conduzir a aventura, descrevendo ambientes, situações e tudo o mais, regras que visam uma coerência durante o jogo, trazendo o elemento do acaso, permitindo que os personagens se aperfeiçoem durante a narrativa, pois as escolhas dos jogadores, em comunhão com o mestre e o acaso, levam a essa criação conjunta.

Existem diversos sistemas de RPG, abrangendo mundos medievais, mundo real, vampiros, ficção científica, cyberpunk, steampunk, entre outros… Um elemento comum a todos os sistemas é a possibilidade de escolher elementos como raça, classes, clã, entre outros que contribuam para a construção do personagem.

No sistema D&D, que é um RPG inspirado no mundo criado por Tolkien, você escolhe a raça e a classe de seu personagem, sendo que a raça traz características físicas aos personagens e mesmo tendências específicas, enquanto a classe estabelece a função do personagem no grupo. Por exemplo, você pode ser um elfo, um anão, um humano, entre outros; sendo que seu personagem pode ter a classe de guerreiro, mago, ladino, entre outros. A comunhão destes dois dados estabelece comportamentos, maneira de agir na narrativa e outras coisas. Um mago, por exemplo, não entrará em conflito direto e buscará melhorar suas magias, enquanto um guerreiro entra em conflito direto e buscará armas melhores.

Este é um exemplo, já que existem outros sistemas com diferentes terminologias, mas o essencial é que um bom jogador precisa além de saber jogar, interpretar seu personagem. Durante a partida, ele necessitará pensar enquanto membro de uma determinada raça e de uma classe. O jogador sabe que continua sendo quem ele é, mas durante o jogo, ele coloca-se no lugar daquele personagem e vivencia aquelas situações imaginárias como se fosse aquele personagem, como fazem as crianças.

Quando melhor compreender o seu personagem, a interpretação será melhor e mais eficiente, afinal, o acaso é parte intrínseca ao jogo, tanto pela ignorância do jogador sobre o que o mestre planejou, como pelo uso dos dados e das escolhas dos outros jogadores. Se o jogador não conseguir interpretar o personagem, pensar no que ele deveria fazer, ou o que faria naquela situação, dentro de suas características intrínsecas, será mais difícil de conduzir o jogo…

Interessante é que ao mesmo tempo em que o jogador interpreta o personagem com plena consciência de estar interpretando, o ato de interpretá-lo pode também transformá-lo. Na situação lúdica criada no jogo, o indivíduo permite-se ser outra pessoa, num exercício quase teatral, o que não o impede de ser ele mesmo, afinal ele pode ver aspectos de si mesmo que não sabe lidar bem, às vezes o jogo pode impulsioná-lo a mudar alguma característica pessoal inclusive. É claro que em alguns casos, muito específicos, o jogador pode preferir o mundo imaginado que o próprio, deixando de ser uma diversão para tornar-se uma obsessão, mas nestes casos, já há tendências do indivíduo para isso, sendo isso uma exceção e não regra. O ato de interpretar um personagem, o ensina a cultivar outras perspectivas, enriquecendo sua capacidade de olhar as coisas, as pessoas e o mundo.

Ao pensar neste aspecto da interpretação no jogo de RPG, pode-se ver que a maneira de ler um livro, ou artigo, de filosofia é o mesmo. Ler um filósofo não deixa de ser tentar interpretá-lo não somente naquilo que ele diz, mas buscando entender o próprio fluxo do pensamento do autor registrado naquele texto.

Pense em um filósofo ateu como Denis Diderot (1713-1784). Se o leitor for religioso  e ler a obra de Diderot sobre essa temática com os olhos prontos a fustigarem cada argumento, há grandes chances de não entender o autor e nem dar-se a chance de refletir com o autor. Se você ler os textos de Diderot buscando interpretar o texto, pensando na linguagem da época, nos problemas daquele período, tentando vivenciar o percurso do pensamento do autor, até se permitindo interpretar, como um jogador de RPG faz com seu personagem, o próprio Diderot daquele texto, eis a possibilidade de compreender o seu raciocínio. É como se ao buscar interpretar o texto colocando-o em contexto de época, e todos os problemas daí derivados, e mesmo se permitir compartilhar das ideias durante a leitura, a compreensão do texto será muito mais rica.

Não significa que ao ler o texto dessa maneira, permitindo-se compartilhar das ideias e propostas do autor durante a leitura, o leitor necessariamente sofrerá uma conversão a estas idéias, podendo ocorrer o contrário, mas, minimamente, passar a ver estas questões com um novo olhar, mais enriquecido por novas perspectivas.

Da mesma maneira, um ateu lendo um texto de um filósofo religioso como Pascal (1623-1662) precisa permitir-se compartilhar das crenças do autor durante a leitura para uma compreensão mais profunda, o que não necessariamente resulte numa conversão do leitor, mas num olhar mais enriquecido às questões tratadas pelo autor.

A grande questão é acompanhar o pensamento do autor, o que podemos chamar de hermenêutica, interpretação, para assim compreendê-lo com maior amplitude. Não se deve ter receio de fazer isso, pois ler um filósofo, discutir com ele durante a leitura, apreender o fluxo de seu pensamento naquele texto específico é extremamente enriquecedor. Se ao ler um texto filosófico e não ver a questão tratada pelo autor de uma nova maneira, ou mesmo não surgir outras questões, é sinal que leitura e interpretação precisam ser refeitas.

Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-rpg-uma-leitura-filosofica/

© 2013 Tiago de Lima Castro

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