Nerdices Filosóficas – The Matrix e o imaterialismo de George Berkeley
Hoje vamos discutir sobre o filme Matrix. Lançado em 1999 e
dirigido pelos irmãos Wachowski, recebeu análises por levantar uma série
de questões filosóficas e, talvez você tenha despertado para a
filosofia graças a este filme.
Toda obra de arte é passível de receber inúmeras análises e
interpretações, pois como diria Umberto Eco: É uma obra aberta, ou seja,
passível de receber novas interpretações. Por isso, é importante não
tomar esta coluna, ou outros textos sobre o filme, como uma
interpretação definitiva, sempre se podem criar novas interpretações.
Você mesmo pode fazer uma análise completamente nova sobre o filme
através de suas vivências, tanto intelectuais como existenciais.
Na cena ilustrada acima, vemos Cypher dizer que ele sabe que o pedaço
de carne não existe, mas a Matrix que informa o seu cérebro de seu
gosto bom, de seu cheiro, mas que quando a põe na boca, simplesmente é
delicioso, então ela existe. Essa postura do personagem nos ajuda a
compreender o imaterialismo do filósofo empirista George Berkeley
(1685-1753).
Em sua época, considerava-se a matéria como tendo dois tipos de
qualidades: primárias (extensão, movimento e figura) e secundárias
(odor, cor, sabor, etc.). As secundárias são subjetivas, o que nossas
experiências diárias nos demonstram, e são aquelas com as quais temos
contato diretamente através de nossos sentidos. Já as primárias eram
consideradas objetivas em sua época, por influência de Galileu. Vamos
pensar no exemplo de uma toalha verde e vermelha. Uma pessoa com
daltonismo perceberá a cor, uma qualidade secundária, de maneira
completamente diferente de alguém sem daltonismo, daí a percepção da cor
ser subjetiva. O tamanho da toalha, que se relaciona com a extensão,
uma qualidade primária, é a mesma independente de nossa percepção, daí a
extensão ser considerada uma qualidade objetiva, pois independe do
sujeito que a observa
O que Berkeley questionou é que se nossa percepção permite o acesso
somente às qualidades secundárias, então somente concebemos as
qualidades primárias por mediação das secundárias, sendo, portanto,
também subjetivas. Daí ele dizer “ser é ser percebido”, ou seja, uma
coisa somente exista enquanto ela é percebida, pois enquanto não é
percebida por um sujeito, não temos como garantir sua existência. Quando
saímos de nossa casa e a trancamos, será que tudo que há ali dentro
continua existindo? Na prática, somente quando vemos os móveis da casa,
temos certeza de que eles existem.
Berkeley verificou que temos certeza de nossa própria existência por
nossos pensamentos e atos, mas ainda somos céticos perante a existência
real da matéria. O que temos certeza é que percebemos uma variedade
quase infinita de estímulos sensoriais diferentes, mesmo que não
queiramos, parecendo que há muitas coisas na natureza. Como estas coisas
se apresentam a nós, através dos sentidos, independentes de nossa
vontade, deve haver um ser, superior a nós, que as gera, sendo esse ser
Deus. Daí, Berkeley ser considerado imaterialista, por colocar em dúvida
as evidências da substancialidade da matéria, ou seja, que ela exista
em si mesma.
Podemos trocar a palavra Deus pela palavra Matrix, e teremos o filme.
As escolhas de Cypher são fundamentadas neste raciocínio, daí podemos
compreender suas motivações, afinal, como a realidade das coisas dentro
ou fora da Matrix são sempre mediadas pelos nossos sentidos, não podemos
dizer de maneira objetiva que há diferença substancial entre estar
dentro ou fora da Matrix. Como a vida fora da Matrix não é tão
interessante assim, porque não retornar a Matrix?
O filme Matrix nos permite compreender a proposta de Berkeley ao
exemplificar seu pensamento, somente trocando Deus pela Matrix. É claro
que o filme não pretende simplesmente abordar o pensamento do filósofo,
mas podemos utilizá-lo para compreender sua teoria, mesmo que Berkeley
não trabalha com a hipótese de “sairmos da Matrix”, pois seu
imaterialismo tem outras finalidades e ajudou a desenvolver o ceticismo
dos empiristas ingleses e a percebermos o quanto nosso conhecimento da
realidade é mediado pelos sentidos, o que influenciará todo o pensamento
produzido posteriormente. O interessante que durante a leitura do
autor, sentimos a mesma estranheza que o filme causou em 1999, e
provavelmente a todos os que o assistem pela primeira vez.
Fontes para aprofundamento
A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge, George BerkeleyCurso de Filosofia, Battista Mondin
Obra Aberta, Umberto Eco
O pensamento e o movente, Henri Bergson
Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-the-matrix-e-o-imaterialismo-de-george-berkeley/
© 2013 Tiago de Lima Castro
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